20 de dezembro de 2010

As vontades e o cata-vento de Cortázar

Só nasço pra a dita realidade à fórceps. Alguém muito próximo sofreu um acidente grave. O dinheiro acabou. A comida da minha gata acabou.O choque, porém, dura o tempo de um encantamento, de uma dose de alucinógeno. E volto, então, para o limbo onde passo a maior parte das minhas horas, a disfarçar o indisfarçável.
Sou um espectro que o que vem do mundo atravessa e se dissolve na atmosfera. Retenho pouquíssimo. Reflito menos ainda. Estar ao meu lado é estar sozinho. E ao mesmo tempo compartilhar de toda uma eternidade de demandas.   
Uma infinidade de vozes bem intencionadas se levanta para me trazer a fórmula de uma vida feliz e tranquila, como se isso pudesse matar a fome de alguém. As vozes, que parecem dissonantes mas bem poderiam formar um coro com pequenas ondulações temáticas entre os naipes, recomendam, em síntese, a anulação do ser, com todas as suas imperfeições e complexidades.
Em alguns casos, são movidas pela tal força de vontade cristã. Afinal, não fomos feitos para sofrer, ora bolas. Em outros, pela leveza e pelo desapego, as características principais do humanóide idealizado pela geração pós-hippie/pré-Z, embustes do medo do outro e de si mesmo.
Pensando bem, não estou falando de mim, mas de nós. De você, que ainda não foi embora. De você, que vai dando seu jeito. Que busca. Desdenha. Cospe no prato que comeu.
Não se iluda. Nem a arte salva.
 

24 de novembro de 2010

Ferida narcísica

Que tal eliminar os pilares imaginários que sustentam sua existência e admitir que você flutua sem rumo?
De repente assim você descobre pra que direção quer voar.

11 de novembro de 2010

Estivadora

Passo as noites no ofício de dividir todas as quinquilharias que acumulei na vida entre os quartos que já foram meus. As gavetas de dezenas de porta-jóias, as portas dos armários, tudo transborda meu vazio. Um vazio que é preciso manter em ORDEM, sob o risco do vazio desabar no abismo.
Ao fundo, uma daquelas musiquinhas irritantes que saem do porta-jóias enquanto a bailarina dança - linda, alienada, morta.

2 de novembro de 2010

Noite de G.H.

Fomos dormir na expectativa da barata.
Ela entrara em rasante imitando cigarra, pondo a gata em estado de caça e os presentes em estado de pânico.
Nos escondemos na cozinha. Os mais práticos trataram de procurar inseticidas. Os menos práticos se limitaram a lamentar a sorte: barata em casa.
Fugida das garras da gata, que pula alto mas não tem asas, ela se escondeu num dos cantos escuros do apartamento.
E nos deitamos na certeza de que, naquela noite, qualquer sombra, qualquer toque, qualquer arrastar seria barata, nas mil formas e texturas do medo.

Imagem: Cockroach, por shelilahtheguide, do Photobucket.

5 de outubro de 2010

Folhas virgens

Nem todo encontro vira poema
Há sempre ali aquela fagulha gostosa que precede a mais tímida palavra - ah, morro...
Mas - ainda que eu estivesse disposta a manter a fagulha acessa com o secador de cabelo -
Faltou madeira
E o poema - aquele que a gente diz que não quer mas continua querendo mais que tudo na vida -  precisa de muita pra arder
Então, salvem-se as florestas e fodam-se os amores.

23 de setembro de 2010

Todo mundo

Tinha 16 anos quando a mãe adoeceu e teve que deixar a escola para trabalhar. Não que ela gostasse muito de estudar, mas, pelo menos, ali, era igual a todo mundo. Ou será que era porque ali era "alguém"?
Foi trabalhar como auxiliar de limpeza num órgão público. Suas colegas eram mulheres mais velhas, gordas, cheias de filhos e problemas diferentes dos seus, ainda que ela tenha sido obrigada a amadurecer precocemente.
Perambulavam pelos corredores e pelas repartições com seu uniforme azul, seus baldes, panos molhados e vassouras. Eram como fantasmas, já que ninguém as via. O uniforme era a insígnia de sua casta inferior, e não havia nada que ela odiasse mais que ele.
As moças da limpeza driblavam a violência da despersonalização com assessórios exóticos, enfeites de cabelo, desenhos no esmalte. E ela percebeu que haviam criado uma trincheira para afirmar sua existência como gente de carne, osso e sangue nas veias: os banheiros, convertidos nos seus escritórios, extensão de suas salas-de-visita, de suas cozinhas.
Era ali que se trocavam confidências e lamentações, que se davam conselhos, se negociavam empréstimos informais e até que se faziam feitiços pra espantar encosto, arrumar marido, afastar amante de marido, tirar filho da cadeia, curar doença e assim vai.
Não foi fácil ter acesso ao clube dos banheiros, especialmente porque em seu semblante o inconformismo se travestia de um ar de superioridade que fazia as colegas rirem. No início, andava sozinha, entre curiosa, assustada e envergonhada, com seu uniforme azul em meio aos taiers e ternos de grife. De tanto não se ver nos olhos dos outros, quase esqueceu que era.
Aos poucos, a tristeza afrouxou o orgulho e ela foi se chegando, se deixando cuidar, aconselhar, invejar pelas colegas. Foi engordando, esquecendo da escola, das amigas, dos garotos. Cansada de cuidar da mãe sozinha, deixou-se casar também.  
Um dia, mais velha, cheia de filhos, olhou pra filha adolescente e lembrou: o que queria era ser alguém que fosse todo mundo.

20 de setembro de 2010

Comunhão profana













Enquanto você busca a "paz", eu te culpo pela minha desordem e aguardo submissa.
Ao comungar do seu caos, me justifico, me eximo, sublimo.

Foto: Nan and Brian in Bed, da série "The Ballad of Sexual Dependency", Nan Goldin.

5 de agosto de 2010

Tentáculos

Vaso remendado traz na pele a marca da queda.
O acidente é o momento máximo de sua existência, é o que o constitui.
Ainda que o tenham convencido de que ele é frágil e que tem que se preservar; ainda que ele tenha criado medo do espinho vermelho-fresco; ainda que tenham se acumulado a poeira e as teias de aranha; ainda que a ideia do cheiro não seja mais que uma ideia.
Ainda assim.
Seu maior desejo continuará sendo a beirada da mesinha estreita da sala, ele, cheio d´água até a boca.
Bobo do vaso.
Sou vaso rachado, e, como é da minha natureza, não tenho medo de quebrar de novo.
Só que criei manias. E cismei que, agora, água rala não me basta.
É que hoje escorro fácil por vias tortas, dispersa nos mil atalhos dos meus pés-de-galinha.
Tenho muito a oferecer, mas muito a perder, e cansei de me desperdiçar. Minha porcelana não se acha na assistência técnica.
Decidi o seguinte: quero que me encham de terra bem molhada e plantem as rosas nas minhas entranhas.
Devo avisar que não tenho alças, mas tentáculos.

28 de julho de 2010

Atrasada



O gozo recalcado explodiu de repente em pequenas convulsões.
Perdi o timing, e o coração doeu de tanto querer te amar direito.
Me entreguei na hora errada. Entenda, não é que não tenha me entregado.
Sou como as androides daquele filme do Wong Kar Wai, o "2046". Parece que sou fria, mas não é isso: sou atrasada. Sou tão antiga que tenho um defeito fatal em meu mecanismo de resposta ao ambiente externo. Minhas reações são retardadas.
É que, bem, você sabe. Tanta coisa.
Mas, reparou nas cores?

26 de julho de 2010

Love me tender, love me sweet

Voltei e encontrei os móveis da casa de pernas pro ar.
Nem a máquina de triturar cérebros ajuda. Parece que o monitor pifou: repete cenas de um filme sangrento que vi numa tarde-noite em que o estômago falou mais que a boca.
Sim, eu queria comida. Minha declaração de amor não teve nada de delicadeza. Foi um arroubo. Um blefe, afinal.
E que importa? Quem disse que é isso que falta?
Depois que souber o que fazer de mim e da casa, vou ficar bem.
Se for o caso, sempre amei melhor à distância.

10 de julho de 2010

Mea culpa

Querida, tenho sido mentiroso. A primeira vez foi quando disse "sim".

20 de maio de 2010

Atrasada para o chá

Andava sobre a cidade tentando se equilibrar em pedaços de tábua que desabavam pro infinito. Onde não havia tábuas, tinha que se segurar, de um lado, em pedaços de arame farpado e, de outro, numa cabeça de homem que pendia de algum teto invisível.
Tinha a impressão de que a cabeça estava viva. Era capaz de ouvir as batidas do coração da esfera sem corpo. Vez por outra, ela ainda parecia lhe sorrir zombeteira, para seu horror.
Sabia que precisava encontrar uma saída e se deparou com uma porta de vidro muito antiga e muito alta. Desceu feito mulher-aranha e eis que se viu com as-pessoas-da-sala-de-jantar.
Tentou explicar tudo (?), mas o fôlego lhe faltava. Continuaram comendo e falando baixo, até que alguém a encaminhou ao lavabo: estava coberta de sangue.

13 de maio de 2010

Deprê?

Não sou infeliz. O que me deixa triste é a certeza de que a vida não cabe na formatação dos dias.

27 de abril de 2010

Sinfonia da moça sozinha na mesa do bar

bate pé
bebe vinho
escreve escreve escreve
bebe vinho
brinca com celular
escreve escreve escreve
olha as horas

acende o cigarro de emergência
desenha o caminho da fumaça com a ponta da caneta

bebe vinho-rabisca-desenha-bate pé-bate tecla-bate copo-caneta no papel-língua na taça-dedos no celular
enviar.
já era.

26 de abril de 2010

Ainda sobre o desejo

E eis que de repente as coisas me soam mais complicadas do que pareciam ser, de novo. Viver meu desejo não depende só de mim. Ou depende, mas tenho medo de ir sozinha. Há como que uma série de protocolos. Uma espécie de processo de seleção a ser disputado. Receio não ter o perfil para ser plena. 

Quisera ter sua coragem, sua força, sua beleza, sua auto-confiança. Você nasceu com asas. Eu nasci pra me esconder sobre elas. Houve um tempo em que pensei que tinha asas e que era tudo uma questão de prática. Culpava os outros pela minha covardia. Me feri na primeira queda e, por orgulho, jurei que jamais me veriam no chão daquele jeito.

Mas onde estou, senão no chão, vendo você voar da janela da prisão que construí? Queria falar com você sobre tudo isso. Queria sua ajuda para aprender a voar, como se isso se ensinasse.

Fique onde está, longe de mim. Recuse-se ao vampirismo, à mitificação. Recuse-me, e, de alguma forma, continuarei aprendendo.

21 de abril de 2010

Sobre o desejo e o recomeço

Pensei em voltar com coisas que foram ficando jogadas nas páginas. Mas esse post é sobre recomeço, então, ainda que os textos "antigos" sejam testemunhos do processo, eles não me servem mais. Vamos ver o que sai daqui pra frente.
E vai sair sem a pretenção de ser poesia, prosa, prosa poética, diário ou seja lá o que for.
Foi uma decisão difícil, entre tantas outras. Mas o fato é que percebi, finalmente, que da minha sobrevivência
depende respeitar o meu desejo, sem subterfúgios.

4 de março de 2010

Invisível

Tinha raiva da cara de desprezo do moço engravatado no banco ao lado, das meninas paralisadas de medo que fingiam não perceber sua existência, dos boys e seus MP3s.
"Tenho irmã!", dizia.
"Olha pra minha cara! Olha bem pra minha cara, pra nunca mais esquecer!", gritava.
Tirou a camisa, mostrou a cueca.
A quem parecia condená-lo por puxar conversa com alguma gaja, dizia "Tá pensando o que, mermão? Tenho irmã!"
O desequilíbrio o mantinha de pé enquanto o trem sacudia.
E se ele caísse? Quem nos salvaria de nossa própria mesquinhez se ele desabasasse?

25 de fevereiro de 2010

Conversa cruzada de Carnaval

(Para Rita)

Como seria começar tudo de novo?
Escolheria o que eu sou hoje outra vez?
Escolhi alguma coisa ou fui simplesmente me agarrando às oportunidades pela falta de um plano, como um macaco saltando de galho em galho guiado apenas pelo medo do chão e pela vontade da comida?
Preguiça, muita preguiça.
Que não me forcem a buscar novos galhos.
Pequenas mudanças não me atraem.
Me joguem de uma vez no meio da selva, e quem sabe brote do desespero a semente fluorescente que aguardo em silêncio.

2 de fevereiro de 2010

Meu pequeno príncipe

Qual seria o gosto de seu único beijo?
Um beijo às escondidas, do qual nem nós mesmos teríamos notícias.
A vida continuaria como sempre foi: a sua, como um dominó cujas peças vão caindo em sincronia perfeita, ao som da firmeza irritante de seu caráter; a minha, com a mesma “flexibilidade” leviana da qual finjo me orgulhar, porque me diferencia de xiitas como você.
Com esse beijo, que seria como se não tivesse sido, não precisaríamos mais nos desprezar, e nos libertaríamos do constrangimento de sentir o coração parar em rápidos olhares que nos prometem o Jardim do Édem.
Não sou mais a menina de saia curta e pernas finas que puxou fitas cor-de-rosa do bolo de 15 anos na esperança de encontrar a aliança escondida no meio do glacê.
Muitas vezes o ar me faltou, e perdi a conta de quantas vezes caí num buraco escuro que pensei que fosse sem fundo.
Mas pra você, e pra ninguém mais, guardaria meu único beijo.

Negra e elegante

A excitação me ronda.
Vontade de pintar o mundo em multicolor e sair escorregando em arco-íris imaginários.
O medo mora ao lado da vontade de pular na cama elástica.

24 de janeiro de 2010

Ladra de bonecas

Sou a viúva que anda pelo mundo a roubar bonecas pra me vingar pela falta de amor.
Com meu chapéu preto retrô, meu batom vermelho a contrastar com um rosto já quase sem cor, vou a cerimônias póstumas como quem faz visitas.
Sou a morte circulando por aí.
Proteja seus brinquedos.

6 de janeiro de 2010

Diário de uma adolescente 1

Fui atraída para uma festa de vampiros.
Era só uma brincadeira, que começou antes, naquela piscina (ou era uma banheira?).
Sei que havia um não sei quem mirrado, acabrunhado e curioso, que eu devia proteger.
E que havia uma não sei quem voluptuosa, que sabia de tudo e ia nos devorar.
Os dois eram eu.
Eu sozinha no meio dos vampiros.
Da primeira, escapei. Ela me cheirou de modo que todos os pelos do meu corpo se arrepiaram e minha espinha se derreteu. E me passou adiante.
O segundo era ruivo. Ao contrário dos outros, usava branco. Ele me sacava, e não tinha pena de mim, como não tinha pena de si mesmo.
Gritei de medo.
Riu da minha cara falsa de Maria Madalena arrependida.
E aí sumiu.
Corri dele, ele à espreita.
No portão, o prenúncio da morte: nenhuma das chaves do molho servia.
Até que uma porta se abriu trazendo luz não sei de onde.
Vi tias, vi mãe.
E fui salva pelo tédio dos dias.