23 de setembro de 2010

Todo mundo

Tinha 16 anos quando a mãe adoeceu e teve que deixar a escola para trabalhar. Não que ela gostasse muito de estudar, mas, pelo menos, ali, era igual a todo mundo. Ou será que era porque ali era "alguém"?
Foi trabalhar como auxiliar de limpeza num órgão público. Suas colegas eram mulheres mais velhas, gordas, cheias de filhos e problemas diferentes dos seus, ainda que ela tenha sido obrigada a amadurecer precocemente.
Perambulavam pelos corredores e pelas repartições com seu uniforme azul, seus baldes, panos molhados e vassouras. Eram como fantasmas, já que ninguém as via. O uniforme era a insígnia de sua casta inferior, e não havia nada que ela odiasse mais que ele.
As moças da limpeza driblavam a violência da despersonalização com assessórios exóticos, enfeites de cabelo, desenhos no esmalte. E ela percebeu que haviam criado uma trincheira para afirmar sua existência como gente de carne, osso e sangue nas veias: os banheiros, convertidos nos seus escritórios, extensão de suas salas-de-visita, de suas cozinhas.
Era ali que se trocavam confidências e lamentações, que se davam conselhos, se negociavam empréstimos informais e até que se faziam feitiços pra espantar encosto, arrumar marido, afastar amante de marido, tirar filho da cadeia, curar doença e assim vai.
Não foi fácil ter acesso ao clube dos banheiros, especialmente porque em seu semblante o inconformismo se travestia de um ar de superioridade que fazia as colegas rirem. No início, andava sozinha, entre curiosa, assustada e envergonhada, com seu uniforme azul em meio aos taiers e ternos de grife. De tanto não se ver nos olhos dos outros, quase esqueceu que era.
Aos poucos, a tristeza afrouxou o orgulho e ela foi se chegando, se deixando cuidar, aconselhar, invejar pelas colegas. Foi engordando, esquecendo da escola, das amigas, dos garotos. Cansada de cuidar da mãe sozinha, deixou-se casar também.  
Um dia, mais velha, cheia de filhos, olhou pra filha adolescente e lembrou: o que queria era ser alguém que fosse todo mundo.

2 comentários:

dansesurlamerde disse...

ai, que triste...
mas tão bonito.

beijo.

Luiz Renato disse...

O difícil é querer ser você mesmo!