31 de outubro de 2009

A mulher barbada

Ela me apareceu em sonho com a barba por fazer.
Ele teorizava.
Ela escancarava em insinuações.
Eu suplicava que ao menos cobrisse parte do corpo - o almoço estava quase pronto, podiam bater à porta.
Ela achava meu medo engraçado.
Ele, muito satisfeito e dono de si. Ambos fingiam não ser tudo ideia dela.
Acordei atordoada, com o gozo entalado na garganta.

30 de outubro de 2009

Febre

Do fundo de meus abismos, uma risada de assustar criança zomba de minha pseudo-disposição de ser relógio.
Mandei só desacelerar, e o piloto automático, pra provar minha incompetência, parou de funcionar.
Não consigo consertar.
Só posso me encolher e chorar envergonhada o Banzo antigo.

Desgosto

Chegar em casa sem energia para abrir o livro.
Ver o amor morrer aos poucos por falta de água.
Ter as crias de suas entranhas criadas por forças estranhas.
Ver o bonde passar. E perder a vida.

Mas um dia - uma noite - aquele piano feito de armário há de se despir da manta empoeirada e sair sapateando e cantando um tango pelo apartamento.

23 de outubro de 2009

Uma história de Cigarrilhas

Deu vontade de comprar cigarrilhas.
Cigarrilhas pequeno-burguesas, com piteira e tudo, que combinam com mãos de dedos grossos e curtos, suntuosamente enfeitados com anéis de prata.
Dedos adestrados de Karamázov, que sabem exatamente onde ir e em que ritmo ir em benefício próprio, sob o pretexto de fazer o bem à humanidade. Dedos que vão fundo, sem se machucar.
Cigarrilhas têm cheiro de suor misturado, têm forma de clarafrio, têm jeito de perder o juízo e a noção de quem se é pra não recuperar nunca mais.
Cigarrilhas afogam, machucam, viciam, humilham.
Não fumo mais cigarrillas.
Na verdade, nunca fumei, embora ache as caixinhas bonitinhas.
Prefiro segurar entre meus próprios dedos despretensiosos um bom paieiro.

19 de outubro de 2009

Sobre bruxas e borboletas

(ou "A mulher desiludida 2". Ou "Terezinha de Jesus")

Aquela bruxa me roubou tudo.
Enfeitiça com seu jeito de desamparada, mas não me engana.
Do canto que me restou, vejo como ela vai mudando de cara pra agradar todo mundo.
Será que ele não vê? Ele não é assim. A gente não é assim.
Nem sei mais o que ele é. Ele está viciado. Viciado nas coisas nojentas que eles fazem.
Não consigo nem pensar em chegar perto dele de novo quando penso que eles...
E acham que eu não vejo!
Às vezes, tenho vontade de gritar na cara deles.
E seria como se todo mundo pulasse para mudar o eixo da terra.
Mas como eu conseguiria respirar se fosse atirada pra longe dele?
Então, fico quietinha, com minhas caras e bocas pra agradar todo mundo.
Não posso ficar desamparada.

Camarote VIP

Gosto de ver o mundo pela janela - de preferência, por detrás das cortinas.
Fazer elucubrações, observações brilhantes, apresentar hipóteses jamais imaginadas para explicar todas as questões da humanidade - meus caros, como sou bom nisso.
Agora, não me peçam para meter a cara, as mãos ou os pés no mundo. Caçador implacável que sou, não vou fazer a besteira de me tornar caça de mim mesmo, não é?
Um distanciamento seguro - por que não? E, ao final de um longo dia da mais fina e asséptica observação da realidade, apertar meu próprio "turn off" e descansar o sono dos mortos-vivos.

Rosa que rola

                          Uma bola rosa-choque puxou conversa com meu pé
                                       E eu, embevecida em meus devaneios

Nem dei bola pra ela...

         Desconsolada, ela correu
                                              rua
                                                  abaixo
        
Enquanto a dona do pé - e da bola
                                                                                       Da outra ponta
                                                                                              Me olhava

                                            Entre constrangida e incrédula
                                                  Linda como as meninas
                                   Que brincam com bolas rosas-choque

14 de outubro de 2009

Cambiações

O chão parece sumir debaixo dos meus pés por ruas ainda não decoradas.
Vertigem? Deleite.
É o vento que me atravessa o cérebro enquanto me misturo às coisas distraídas.
Quem me guia? Quem me diz qual é o próximo passo?
Esse "novo" eu que "surge", que traz de mim?
Para onde há de me levar meu rabo?

1 de outubro de 2009

Vendida

Ando pelo mundo lânguida e desinteressada das coisas como uma gata velha.
Tenho minha almofada, tenho minha ração.
Recebo de bom grado os afagos desatentos de quem passa.
É hipocrisia ou instinto de sobrevivência o que me impede de enxergar as redes na janela?
Mimetizo-me, mas sempre gata:
me faço de tola enquanto engulo passarinhos pelos cantos da casa.